sábado, 19 de março de 2011

el dia que me quieras

1

não ouço mais música nenhuma. chutei a noite na cara e fiquei em casa ouvindo meus próprios ruídos. estômago fraco, penso. essa cadeira velha também faz um barulho desgraçado enquanto escrevo. desliguei o rádio pra não cometer um homicídio. só queria ficar um pouco em silêncio embora o som que vem das ruas aniquile qualquer possibilidade.
   hoje enquanto relia um velho texto em voz alta apareceu esse cara aqui em casa – não sei sequer o nome do filho da puta – com uma mochila cheia de discos e dizendo cara saca só a porrada de bolachão que eu descolei cara & sacudindo os braços & suando & cuspindo. tinha um aspecto horrível. miserável, pensei. não sabia o que era um banho há semanas. os cabelos soltos e sujos lhe caíam pelos ombros e cobriam um lado do seu rosto. a barba era tão comprida que enquanto falava e cuspia pequenas gotículas de saliva ficavam penduradas nos bigodes e escorriam pelos cantos da boca.  parecia personagem de romance russo. mas não tinha a elegância do Príncipe Míchkin. se enrolou todo com os botões da mochila, derramou minha cerveja no tapete, caiu por cima do meu gato na poltrona.  
- que que ce tem aí nessa mochila maluco.
- coisa de primeira. Só raridade. Tu vai querer ficar com tudo. 
   tirou a primeira raridade da mochila velha. “Samba, Suor e Sacanagem”.
- ce só pode ta de brincadeira. Que merda é essa. Tu ta querendo me vender essa porcaria?
- peraí mano... esses sambas eram da minha avó cara. Não quebra eles não.
- e tua avó curtia samba.
- era da velha guarda.
- peraí.
   fui até a geladeira e peguei uma cerveja. enquanto abria a garrafa fiquei parado por um momento pensando porque esse cara veio bater justamente na minha porta com os malditos discos da avó. Porque todo mundo que tinha alguma porcaria velha pra jogar no lixo sempre achava que poderia ganhar um dinheirinho vendendo suas tralhas todas pra mim. Principalmente livros e discos. sujos, arranhados, derretidos. mais mortos que seus antigos donos. nada que valesse a pena. até então.   
     quando cheguei na sala ele já havia espalhado toda aquela pilha de discos pelo chão e ria como um idiota segurando uma capa com a mão esquerda e com a direita apontava o indicador dizendo olha isso cara olha isso cara & dando pulinhos & cuspindo. deprimente.
... Acaricia mi ensueño el suave murmullo de tu suspirar... como ríe la vida si tus ojos negros me quierem mirar... y si és mio el amparo de tu risa leve que es como un cantar...
   cantarolei pela casa enquanto Gardel se contorcia no túmulo.
- te dou dez reais por esse e nenhum centavo a mais.
- vinte. Esse é raridade.
- como é que ce sabe? Até agora não passava de um monte de lixo pra você.
- quinze e os cigarros.
- quinze então. e tira essa mão daí. O maço ta acabando e a grana ta curta. Pega um e vaza. Toma, ta aí a tua grana. Se for subir o morro fica ligado que os homens tão dando bote geral.
  guardou as capas todas que estavam pelo chão na mochila velha e saiu sem dizer palavra. ouvi grunhidos no corredor como um animal doente abandonado.
   

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